segunda-feira, 24 de março de 2014

Minduim

 por Mariana Piedade.

Não sei dizer exatamente quando foi que eu li pela primeira vez uma tirinha dos Peanuts. Sei que quando era pequena não dava muita atenção, em parte por não conhecer os personagens dentro do mundo dos quadrinhos (O Snoppy é uma figura tão reproduzida quanto Mickeys e Ronalds McDonalds) e em parte por achar o design dos personagens ruim;  preferia a rigidez e a simetria desgastada das princesas da Disney, ao visual inacabado, desleixado e melancólico de Schutz. 
 Mas acho que tudo começa em meados dos anos 80,  quando um fofo animador, produtor, roteirista e dublador mexicano, chamado Bill Melendez, levou uma proposta ao cartunista Charles Schutz (dias antes de sua morte): transformar os icônicos quadrinhos em uma série de animações para televisão. O sucesso foi tanto, que a série nunca abandonou de vez os canais de desenhos americanos (pelo menos até 2004, o desenho dos Peanuts tinha hora marcada em canais de grande audiência, como Fox Kids e Cartoon Network).  
 E eu cresci sendo uma criança vidrada em desenhos animados. Assistia a tudo que passava na TV, o dia todo, inclusive desenhos que não gostava muito. Posso dizer que essas horas em frente à televisão foram uma fonte importante para a minha imaginação, pois os anos 90 e o início dos anos 2000 representaram uma revolução nessa indústria e na forma como se contavam histórias na TV: tentava-se fugir dos antigos moldes de desenhos dos anos 50, 60 e 70, sendo um período de muitas novidades acerca de estilo e temática. E os Peanuts, apesar de serem fruto do século XX, foram grande inspiração para os novos desenhos animados, como “Hey Arnold” (um dos maiores sucessos do canal Nickelodeon, que era contextuado em uma Nova Iorque mergulhada na cultura do jazz). 
Me lembro nitidamente de um episódio dos Peanuts que vi em 2000 (eu tinha cinco anos) no qual uma das personagens, uma doce menininha de oito anos, tinha leucemia. E aquilo me chocou, porque apesar do tema pesado, todo o episódio seguia pela ótica infantil. Os clássicos personagens Charlie Brown e Linus mostravam uma postura que pendia entre a tristeza e frustração de um adulto e mantinha a inocência e o carinho de uma criança curiosa.  


E acho que essa é a grande magia das obras de Schultz. Lendo sua biografia, pude perceber que ele nunca abandonou sua primeira infância; ele viveu sob essa mesma aura e os acontecimentos de seus primeiros anos foram definidores da sua personalidade (o que acredito acontecer com todo mundo). Sendo um homem melancólico, tímido e apaixonado, extremamente crítico e cético, Charles Schutz nunca perdeu esse questionar infantil e viveu uma vida de frustrações e inquietações como qualquer adulto. O personagem Charlie Brown, com sua comprida camisa amarela, cabeça grande e olhos pequenos (um menino sem características marcantes); dentro de um traço desleixado e despretensioso, é a personificação desse sentimento pateta que acompanhou Schultz e acredito que se apresenta a todos nós em algum momento: 



[Charlie Brown]: “You know why that little red hair girl never notices me? Because I’m notihing! When she looks over here there’s nothing to see! How can see someone who’s nothing?” 
[Linus]: “You’re depressed, aren’t you?”

Todos somos um pouco como Charlie Brown. Acredito que o grande sucesso dos Peanuts se dá pelos seus efeitos terapêuticos: ao ver nossas angústias pessoais personificadas e solidamente espelhadas,  experimentamos o alívio de sermos compreendidos. E isso está abarcado não só nas frases irônicas e retóricas de Charles Brown, Lucy, Linus, mas também na suavidade das cores (a animação era toda realizada em aquarela) e, como já dito antes, na simplicidade do traço. 
Outro ponto de relevância é a trilha sonora, produzida pelo pianista Vince Guaraldi, um homem de visual e personalidade tão patética quanto o Charlie Brown. Sendo assim, percebe-se nas obras essa mistura de sentimentos: notas leves, soltas e divertidas, como uma brincadeira infantil, mas em um conjunto que remete a um jazz doce e delicado, com uma ar de melancólica e frustração, como quem toca para esquecer de um coração partido.




O charme dos Peanuts está na sua delicadeza, simplicidade e exatidão que cada personagem questiona a vida. No fato de nunca crescermos totalmente e vivermos eternamente os resquícios da nossa infância; curiosidade, criatividade e inocência, em um mundo que pode ser muito duro, frustrante e sem graça. Os Peanuts não são destinados a nenhuma faixa de idade específica. São o espelho de uma parte da consciência humana que segue sempre conosco: a inquietação que as várias tristezas da vida nos trazem.




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