quinta-feira, 20 de março de 2014

Ilusões dentro de ilusões - Minha experiência estética


(Escrito por Matheus Marchetti)

Foi em Outubro de 2002, aos 7 anos, que vivenciei algo que me marcou muito e definiu em grande parte como seria minha vida até agora. Estava em Nova York com meus pais, e fui levado para assistir o musical britânico “O Fantasma da Ópera”, de Andrew Lloyd Webber, na Broadway. Esse musical transformou meu mundo naquela época, e foi responsável por uma serie de decisões e ações que eu tomei na minha vida ao decorrer dos anos – inclusive o sonho de se tornar cineasta (para enfim poder realizar minha própria adaptação da historia).
Eu cresci ouvindo CDs de ópera, não por ter interesse no significado das palavras ou das peças de origem, mas pela pura beleza dos instrumentos e das vozes – sons tais que inspiravam minha imaginação. Também cresci com uma grande paixão por historias “assustadoras”, de vampiros, bruxas ou fantasmas. A junção de “Fantasma e “Ópera”, portanto, parecia ser a mistura perfeita de duas coisas que eu amava – então estava completamente animado para conhecer essa obra. 


O musical é baseado em um livro homônimo de Gaston Leroux, e teve inúmeras adaptações em diversas mídias, incluindo um filme de 1943, dirigido por Arthur Lupin – que eu já havia assistido antes de ver a peça. Entretanto, este era bem pouco fiel ao trabalho de Leroux, usando os temas e ideias principais mas com uma trama um tanto diferente. Por outro lado, o musical estava muito mais próximo a sua fonte literária (apesar de, interessantemente, adotar algumas das mudanças propostas por Lupin).
Na época, como meu inglês era bem limitado, minha base para o entendimento da narrativa estava no meu conhecimento prévio do filme de Lupin, e o poder das imagens e do som. E se a peça que eu estava prestes a assistir tivesse tido direção e composição completamente diferentes – talvez eu não teria tido o tipo de imersão e aproveitamento que eu tive.
Eu fui transportado para dentro da historia imediatamente ao entrar no Majestic Theater na Broadway. A arquitetura clássica do teatro já me aproximava do mundo da grandiosa Ópera de Paris no século 19, onde “O Fantasma...” se passa. Quando entramos no auditório, vemos que o interior do proscénio já está decorado com os objetos de cena, iluminado atmosfericamente, e pronto para o inicio do Primeiro Ato. A cena é um leilão de antiguidades, no palco de um teatro em ruínas – os produtos à venda cobertos fantasmagoricamente com panos brancos e sujos; e o teatro abandonado representado por uma série de pesadas cortinas escuras decaídas. Essa imagem, combinada com o som desconcertante da orquestra se afinando para a apresentação, criou um clima de mistério que deixou aquela criança assustada mas completamente fascinada. Eu já havia “atravessado o espelho” para o outro mundo, e a aventura ia começar enfim a qualquer momento.
Apesar do musical de Webber ser talvez a adaptação mais conhecida do romance de Leroux (na verdade é ainda mais famosa do que o próprio), a obra original foi adaptada varias vezes para o teatro musical – e acho que essa midia é talvez a mais interessante para se contar a historia. Cria-se uma metalinguagem: estamos num teatro assistindo pessoas em um teatro, vendo peças dentro de peças; ilusões dentro de ilusões. Isso automaticamente nos aproxima do universo narrativo. Mas particularmente na visão do diretor Harold Prince e da cenógrafa/figurinista Maria Björnson, essa metalinguagem é aguçada, e a viagem intensificada.
A produção americana do musical, replicando a original de Londres, é uma montagem complexa e de custo milionário, mas a concepção visual de Björnson é relativamente simples: O proscênio é decorado com imagens cavernosas de anjos e dêmonios em dourado - tanto uma referencia às elaboradas decorações da verdadeira Ópera de Paris, como também uma representação de alguns dos temas e simbolismos recorrentes da trama (mitologia; céu e inferno; sagrado e profano; bela e fera); um barroco lustre de cristal é pendurado em cima da plateia, e em dos momentos mais memoráveis, é derrubado em direção ao palco – quase caindo nos espectadores - pelo Fantasma do título. Mas no palco em sí há poucos objetos de cena – estamos em uma caixa preta, e para as cenas fora das apresentações da Ópera, a ambientação é dada por cenários minimalistas e abstratos, muitas vezes somente pelo uso constante das infinitas camadas de cortinas de diversos padrões, tons e texturas - usadas para diferentes fins. Panos e tecidos em geral tomam um papel importante na ambientação, não apenas em relação às cortinas, mas mais notoriamente nos figurinos altamente detalhados de época – representando as roupas usadas tanto nas elaboradas montagens da Ópera, como as roupas usadas pelo elenco e equipe da Ópera fora de cena (e não podemos nos esquecer dos icónicos figurinos monocromáticos do próprio Fantasmas). Frequentemente, os figurinos acabam substituindo objetos cênicos para nos transportar a um determinado ambiente. E a iluminação do show também faz uma grande diferença, tendo a intenção de criar um efeito de “luz de vela” que, contrastando com o fundo preto, cria o clima de escuridão perfeito tanto para a época (1881) como para a alma da historia em si.
As melodias de Webber, apesar de terem suas raízes parcialmente no rock-pop dos anos 80, frequentemente homenageiam e imitam os estilos de compositores como Mozart, Puccini, Gounod, etc – os autores das grandes obras que eram apresentadas na Ópera de Paris durante aquele período histórico.
Resumidamente, o resultado final do show é um tipo de magia que acontece raras vezes no teatro – uma alquimia perfeita entre os talentos de Webber, Prince, e Björnson, sem contar é claro das intensas interpretações dos vários elencos que estiveram no musical ao longo dos seus mais de 25 anos ininterruptos de apresentação (tanto em Nova York como em Londres).
A trama da obra me cativa profundamente até hoje – mas o que mais se infiltrou em minha alma como artista e espectador são as oníricas composições cênicas e musicais – o casamento entre esses dois tipos de composição, para ser mais exato. É a sua estética que me assombra. Jamais poderei me esquecer daquelas imagens – tão bonitas, dramáticas, misteriosas e ocasionalmente extremamente sensuais: A ascenção do lustre – com a tenebrosa música de órgão (semelhante à “Tocata e Fuga em D Menor” de Bach) – que nos transporta para os anos de glória da Ópera; A viagem para o sombrio mundo subterrâneo do Fantasma, com candelabros milagrosamente surgindo de dentro de um lago (um dos efeitos especiais mais marcantes da peça); um grotesco baile de máscaras ala-Edgar Allan Poe, que culmina na chegada da Morte Vermelha; as bailarinas de Degas dançando no escuro; O Fantasma se materializando pela primeira vez no reflexo do espelho da protagonista; a magnifica estátua de anjos que desce do proscênio durante o fim do primeiro ato para representar o telhado da Ópera; o cemitério em chamas; o desmascaramento do Fantasma (que foi responsável por muitos dos meus pesadelos enquanto criança); entre muitos outros.
“O Fantasma da Ópera” é um ode ao belo – à beleza superficial, e à beleza que pode ser encontrada nas coisas mais aparentemente grotescas e aterrorizantes.  Essa foi minha experiência estética mais marcante – um ataque esmagador de uma forma de arte aos meus sentidos, do melhor jeito possível, se assimilando dentro de mim e continuando a me afetar profundamente depois de todos esses anos. 

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